Como a austeridade travou a dívida pública

Ouvimos muita gente no dia-a-dia mencionar algo sobre a dívida pública sem realmente perceber muito bem como funciona nem sequer como é calculada. Em acréscimo nas questões fraturantes com referência ao antigo Primeiro-Ministro José Sócrates e às políticas de austeridade dos últimos anos, as opiniões da rua e dos espaços de comentários na Internet, assim como de muitos agentes da classe política, tornam-se mais acesas e mais dicotómicas, todavia por vezes ainda mais ruidosas e confusas. Quase toda a gente na praça pública fala da dívida pública, desde jornalistas, políticos, comentadores, economistas e até eleitores comuns. Se por um lado tal é positivo, pois realça que a população em geral no exercício da sua cidadania considera este indicador importante, por outro lado o interesse do público gera também muita desinformação que convém todavia esclarecer matematicamente. Na Matemática Viva somos totalmente apartidários, queremos deixar isso bem vincado, mas como sempre referimos achamos que é importante vivificar a matemática em Portugal, tornando o eleitor mais esclarecido. Assim sendo, demonstrarei matematicamente que as políticas de austeridade na realidade colocaram um forte travão na dívida pública.

Um sistema dinâmico: o automóvel de dois lugares

A dívida pública como muitos indicadores económicos representa um sistema dinâmico, ou seja, estamos perante um sistema que obedece a uma inércia, neste caso uma inércia económica-financeira. Foi Newton um dos primeiros estudiosos dos sistemas dinâmicos e a usar cálculos variacionais para os estudar. Num paralelismo no dia-a-dia, o sistema dinâmico mais elementar que podemos fornecer ao comum dos leitores é o de um automóvel de dois lugares, que partiu da origem de uma determinada pista sempre a direito. Se por acaso num determinado instante trocarmos de condutor, e este quiser parar o avanço para voltar para trás, a paragem não é imediata. Ao travar, a velocidade vai abrandando, todavia mesmo com a diminuição da velocidade, o automóvel não deixa de avançar para a frente. Nesse movimento de travagem, em que a velocidade, ou seja, a variação do espaço, diminui a cada instante, a aceleração é constante e negativa, pois o automóvel está a travar. Essa aceleração negativa que é sempre constante representa na realidade a variação da velocidade. Como a velocidade varia de forma regular e linear, a aceleração, que representa a variação da velocidade, é constante. Reparem que uso aqui a aceleração mesmo considerando que o automóvel está a parar, pois quando um carro para, está matemática e fisicamente a acelerar negativamente. Resumindo: a velocidade é a variação do espaço percorrido e a aceleração é a variação da velocidade. Logo, a aceleração é a variação de segunda ordem do espaço percorrido. Mas vamos a um exemplo! No seguinte gráfico podemos ver como estas três variáveis interagem. 

Gráfico que combina distância percorrida, velocidade e aceleração.

Entre os 0 e os 4 segundos: até cerca de 4 segundos o automóvel tem uma aceleração constante que é 4 (não interessa para o efeito mencionar a unidade da aceleração). Como a aceleração é constante e de sinal positivo, o carro está a avançar e a velocidade aumenta de forma regular e linear (linha reta na velocidade). Por essa altura o espaço percorrido aumenta também mas de forma quadrática (a curva que se nota no gráfico da distância é quadrática até aos 4 segundos).

Entre os 4 e os 7 segundos: no segundo troço, entre os 4 e os 7 segundos, o carro deixa de acelerar, pois a sua aceleração é zero, o que significa que a velocidade se mantém constante (caso ideal sem atritos, como o vento). Como a velocidade se mantém constante, a distância percorrida não deixa de aumentar, mas neste caso, como não se acelera, a distância avança de forma linear (a reta no gráfico da distância).

Entre os 7 e os 15 segundos: imaginemos que a partir desse instante, perto dos 7 segundos, troca-se de condutor e que esse condutor está descontente com o caminho tomado e decide travar o automóvel. Nessa altura esse condutor ao travar aplica uma aceleração negativa de 2, que faz com que a velocidade vá baixando de forma linear, mas o carro não começa a andar de marcha-atrás de forma imediata. Vai ser necessário que o carro chegue até aos 150 metros, nos 15 segundos, para que o carro pare.

Entre os 15 e os 23 segundos: então, ao continuar a aplicar uma aceleração negativa (neste caso, já não o travão, mas a marcha-atrás), o veículo começa a regressar à origem, e a velocidade começa a ser negativa a partir dos 15 segundos. Deixo a interpretação do resto do gráfico aos leitores.

A dívida pública é um sistema dinâmico

A dívida pública é um sistema dinâmico porque qualquer variável de controlo que possa nela ser aplicada (os pedais no automóvel), estão longe de provocar no instante variações significativas. Cortar nos gastos do Estado não implica que a dívida desça de forma imediata, pois na dívida estão subjacentes compromissos de longo prazo, como o pagamento de juros em títulos plurianuais da dívida. Se alguns pagamentos como as PPP rodoviárias foram temporizados para alguns anos mais tarde, tal também tem efeitos dinâmicos na dívida. Podemos também afirmar de forma genérica que o Estado tem muitos compromissos financeiros, com muitas entidades, e que tal insere uma certa inércia no comportamento da dívida. Assim interessa estudar a dívida na ótica do estudo a sistemas dinâmicos. Neste caso por questões de simplicidade usamos sistemas dinâmicos discretos de segunda ordem, sendo cada ano civil a unidade de tempo.

No paralelismo da dívida pública com o automóvel de dois lugares, podemos afirmar que a distância na pista é o valor da dívida, ou seja, se o automóvel está na origem a dívida é zero, já se o automóvel está nos 160 metros, a dívida é 160 mil milhões de euros, ou seja, um metro por cada mil milhão de euros de dívida. Ora se num determinado instante em que os condutores avançam, eles trocarem de lugares e o novo condutor adotar uma tática diferente, o automóvel guarda uma inércia que precisa de ser corrigida, inércia essa que demora tempo a corrigir. Se o segundo automobilista quiser parar e fazer marcha-atrás, terá primeiro de travar. Mas mesmo que trave o automóvel, este continuará durante algum tempo no sentido positivo, ou seja, em frente (dívida a crescer, mas a crescer num ritmo mais baixo; automóvel a avançar, mas a avançar mais devagar). Só quando o automóvel estiver imobilizado, ou seja, a variação do avanço for zero (variação do avanço é a velocidade), é que o automóvel pode retornar e começar a fazer marcha-atrás.

Nesta contabilidade não se tem em conta ainda a variação do PIB, mas apenas o valor absoluto da dívida. Também não se contabilizam contabilidades paralelas (PPP, dívidas de empresas públicas), nem que mecanismos foram usados para baixar a dívida (por exemplo privatizações), fazemos apenas uma análise à dívida vista pelos valores que o PORDATA e o INE nos facultam. Resumindo, no caso do nosso automóvel, a distância percorrida pelo automóvel representa o valor absoluto da dívida; a velocidade do automóvel representa a variação da dívida; e a aceleração representa a variação de segunda ordem da dívida.

Trajeto percorrido pela dívida pública desde 1992.

Velocidade de crescimento da dívida pública.
A austeridade baixou a velocidade de crescimento da dívida.

Aceleração de crescimento da dívida pública.
A austeridade travou a dívida ao impor-lhe uma tendência dinâmica de redução.

Caso o caro leitor tenha percebido a forma como funcionam estes sistemas dinâmicos (de segunda ordem), compreende de forma cristalina pelos gráficos acima que a austeridade impôs um forte travão na dívida pública. No primeiro ano do governo Sócrates, houve um aceleração da dívida, fenómeno que foi travado no segundo e terceiro anos, mas que foi novamente acelerado em ano eleitoral. Com a crise das dívidas soberanas em meados de 2008, a aceleração da dívida toma valores muito elevados em 2009, valores que se mantêm em 2010. Todavia conclui-se facilmente pelo gráfico que desde a entrada do governo seguinte que impôs políticas de austeridade, que a "velocidade" da dívida tem vindo sempre a diminuir, e que a "aceleração" da dívida é mesmo negativa. A partir de 2015 a velocidade da dívida é mesmo negativa e a dívida começa a descer a sua trajetória, ou seja, começa a diminuir.

Usando o nosso paralelismo pode-se dizer de forma categórica e inequívoca que as políticas de austeridade colocaram um forte "travão" no comportamento da dívida pública. Ignorar tal facto é ignorar as ciências matemáticas.