Como efetuar cálculo mental

Entendemos por cálculo mental todos os cálculos que são feitos sem orientação de papel e caneta, calculadora ou outras instrumentos físicos. Apesar de este conceito ser ambíguo (pode ver-se Buys, K. (2001) - Children learn Mathematics) no âmbito 'Mental Calculation World Cup' ele não levanta quaisquer dúvidas. 

A cada dois anos é organizado, numa cidade alemã, um campeonato mundial de cálculo mental. O primeiro campeonato aconteceu na cidade alemã Annaberg-Buchholz a 30 de Outubro de 2004 e envolvia quatro modalidades: somas de dez números com dez dígitos cada, produto de dois número com oito dígitos, raízes quadradas de números com seis dígitos e, finalmente, cálculos com calendários determinando o dia da semana a que determinada data corresponde. Tarefas que seriam facilmente executadas por calculadoras ou com um suporte escrito, que claramente são proibidos no torneio. O vencedor final de todo o torneio, que inclui a ponderação de todas as modalidades, foi o britânico Robert Fountain. 

Entretanto as provas existentes foram ficando mais exigentes e foram acrescentadas outros desafios de cálculo mental. Por exemplo, no primeiro torneio os concorrentes tinham de realizar em dez minutos dez somas de dez números com dez algoritmos, já em 2012 apenas lhes era dado sete minutos. Em 2012 foram apresentados dez tipos de desafios completamente diferentes que envolviam tarefas de memorização e ainda o chamado "most versatile calculator", cuja organização descreve como sendo cinco desconhecidas "surprise tasks". No último campeonato o campeão foi Naofumi Ogasawa, que nesse mesmo campeonato bateu o recorde mundial de soma de dez números com dez algarismos cada 191 segundos (pouco mais de três minutos, menos de metade do tempo dado para a prova).
O recorde anterior (222 segundos) era detido por aquele que podemos considerar como a mais famosa calculadora humana, o espanhol Alberto Coto García. Durante o primeiro campeonato mundial de cálculo mental, Alberto Coto estabeleceu o recorde mundial desta mesma prova em 350 segundos, o que demonstra que todos os humanos conseguem desenvolver as suas capacidades de cálculo mental de forma significativa. Os mais interessados podem ver os desafios propostos em 20102012. O campeonato de 2014 ainda não está marcado, mas seguindo a tradição será expectável que seja numa cidade alemã entre Julho e Novembro do próximo ano.

Para conseguir ter bons resultados nestas provas, não basta fazer todas as aplicações móveis de cálculo mental, é preciso aprender e treinar os chamados "numerical shortcuts", os truques de cálculo numérico. Alguns destes truques são explicados pelas calculadoras humanas, outros são simplesmente aquilo a que alguns leigos chamam de "matmagia", que irei exemplificar de seguida.

Multiplicar número por 11, 111 ou por qualquer sequência de uns:
Tomemos um número com dois algarismos na forma [M,N], onde M representa o primeiro algarismo e N o segundo. Então o produto de MN por 11 será dado por [M, M+N, N], caso M+N<10, caso contrário será [M+1, M+N, N].
Por exemplo, 72*11=792 e 86*11=946.
A demonstração é facilmente feita decompondo MN em 10M+N e 11 em 10+1 e aplicando a distributividade do produto face à soma.
Da mesma forma, para o caso do produto de um número da forma [M, N, O] por 111 teríamos [M, M+N, M+N+O, N+O, O] (e quando a soma ultrapassa o limite de 9 teríamos de somar 1 à 'casa' anterior).
Por exemplo, 123*111= 13653 e 346*111=38406.
E assim sucessivamente, para qualquer sequência de uns, desde que tenhamos o mesmo número de algarismos nos dois números que compõem o produto.

Quadrados de números acabados em 5:
Seja um número da forma [M, 5], onde M representa o primeiro algarismo e 5 o segundo. Assim, este número ao quadrado será dado por [M*(M+1), 25], onde neste caso cada 'casa' corresponde a dois algarismos.
Por exemplo, 75*75= 5625 e 15*15=225.
A demonstração é facilmente feita usando o caso notável do quadrado da soma e decompondo qualquer número na soma de 10M+5.

No final das demonstrações dos respectivos truques podemos reflectir sobre uma outra definição para o cálculo mental: Metodologia para realizar cálculos complexos através de cálculos mais elementares, utilizando as propriedades algébricas dos números inteiros.

A Magia do Primeiro Algarismo

Pensemos na sucessão das potências de 2: 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128, 256, 512, 1024... Agora, consideremos, não esta sucessão, mas a sucessão do primeiro algarismo significativo (diferente de zero) de cada um dos termos. Esta nova sucessão começa obviamente por 2, 4, 8, 1, 3, 6, 1, 2, 5, 1... Esta sucessão de primeiro algarismo toma, obviamente, apenas 9 valores: os inteiros 1 a 9. O que sugere imediatamente a pergunta: qual é a frequência assimptótica com que surge nesta sucessão cada um dos inteiros? Intuitivamente, a resposta deveria ser que todos os inteiros surgem com igual frequência, ou seja, 1/9, ou aproximadamente 11,1%. Não há razão óbvia a priori para que o primeiro algarismo de uma potência de 2 tenha preferência por tomar algum valor particular. O número 6 parece tão legítimo como 9 ou 1. No entanto, eis a primeira surpresa. A distribuição está muito longe de uniforme: pelo contrário, aproxima-se muito bem de uma distribuição logarítmica, em que


onde P(n) é a probabilidade de ocorrência do algarismo n.

Esta distribuição apresenta-se na linha 1 da tabela 1. O leitor pode achar isto uma pequena e insignificante curiosidade. Talvez a formação das potências de 2 introduza um mecanismo oculto de desvio da distribuição, e é tudo. No entanto, isso não é verdade: se em lugar de potências de 2 considerar potências de 3, 4, ... 9, 11, ... obterá a mesma distribuição logarítmica.


No gráfico 1 comparam-se os valores de log10(1+1/n) com a frequência relativa da ocorrência do algarismo n para as primeiras 1000 potências de 2 e de 7.


Estranho! Muito mais estranho é o que se passa com a tabela 1.Nela apresentam-se as frequências do primeiro algarismo de números recolhidos do «mundo real»: cotações de acções na bolsa portuguesa no dia 16 de Outubro de 2002 (apenas 58, o que dá uma amostra estatística pequena); número de porta de 307 pessoas ao acaso (obtidas abrindo a lista telefónica de Lisboa ao acaso); pesos moleculares de 1800 compostos; áreas (em milhas quadradas) de centenas de rios americanos; população de 3500 cidades americanas; números que aparecem numa edição ao acaso das Selecções do Reader's Digest.

Os resultados são difíceis de acreditar. O leitor provavelmente esperaria encontrar uma distribuição uniforme nas frequências dos primeiros algarismos; uma vez que estes números não estão correlaccionados entre si, todos os algarismos deveriam ser igualmente prováveis. Pois bem, isso é falso: a distribuição de qualquer destas frequências é logarítmica, descrita por (1). Segunda surpresa: a distribuição dos primeiros algarismos parece ser sempre a mesma distribuição logarítmica, independentemente da natureza dos números.

Como em todos os factos científicos, a magia não existe. Esta história começa em 1881 com o astrónomo Simon Newcomb. Num pequeno artigo no American Journal of Mathematics, Newcomb observa que os livros de tabelas de logaritmos davam sinais de muito maior uso nas primeiras páginas do que nas últimas — o que era estranho, porque uma tabela de logaritmos não é exactamente como um romance que se deixa ao fim de algumas páginas se não agradar. Newcomb propôs mesmo, sem grande justificação, a lei logarítmica acima referida.

Em 1938, o físico Frank Benford, da General Electric, fez exactamente a mesma observação, exactamente pelos mesmos motivos (desgaste dos livros de tabelas de logaritmos), e propôs exactamente a mesma lei logarítmica. Benford compilou uma tabela de distribuição do primeiro algarismo para amostras significativas de 20 tipos de números diferentes (na verdade, os dados da tabela 1 sobre pesos moleculares, áreas de rios e população de cidades são os apresentados por Benford), chegando à conclusão de que independentemente da natureza dos dados a distribuição era sempre a mesma. Mais ainda: se somasse todos os dados independentemente da sua natureza, ficava com um conjunto de 20 229 dados que seguia a lei quase perfeitamente — muito melhor do que qualquer um dos 20 conjuntos isoladamente. O artigo de Benford não passou despercebido, e hoje a lei fenomenológica (1) é conhecida como Lei de Benford.

Nos 60 anos que se seguiram à publicação do artigo de Benford, foram realizadas por matemáticos, físicos, estatísticos e até amadores muitas tentativas de demonstração da lei de Benford. No entanto, estas tentativas nunca tiveram sucesso completo.

Em 1996 o matemático Theodore Hill, do Georgia Institute of Technology, conseguiu finalmente resolver o problema de uma forma muito elegante e verdadeiramente matemática: substituiu o problema original por outro aparentemente mais difícil. Observou que uma lei universal para a distribuição do primeiro algarismo deveria ser invariante de base: isto é, deveria ser válida em qualquer base inteira, e não apenas na base 10. Analisando esta hipótese de invariância de base, Hill descobriu que ao considerar conjuntos de diferentes tipos de números, e não os próprios números, os problemas matemáticos desapareciam. Hill conseguiu assim demonstrar formalmente que a lei de Benford é a única distribuição de probabilidade invariante de base. A lei de Benford é, portanto, um teorema. Não há magia no fenómeno do primeiro algarismo.

Uma outra demonstração de Hill considera a mistura de muitas distribuições de dados de natureza diferente em simultâneo. O que se mostra é que, mesmo que cada distribuição não siga individualmente a lei de Benford, o conjunto de todas as distribuições (uma espécie de «amostras aleatórias de distribuições aleatórias») o faz. Assim, a própria demonstração esclarece a observação algo misteriosa de Benford: a de que a união dos seus dados fenomenológicos satisfazia muito melhor a sua lei do que qualquer dos conjuntos de dados isoladamente. Da mesma forma, a mistura dos valores das cotações das acções em Bolsa, combinadas com as moradas e com os rios americanos verifica mais precisamente a lei de Benford do que qualquer dos dados separadamente!

O exemplo mais espectacular é sem dúvida a aplicação da lei de Benford à fiscalização de impostos e à auditoria financeira. A observação essencial é a seguinte: dados contabilísticos reais constantes das declarações fiscais satisfazem com probabilidade 1 a lei de Benford. Ora o que se verifica é que as pessoas são, do ponto de vista da lei de Benford, «más» a inventar dados. Dados fictícios fabricados pela mão humana raramente satisfazem a lei de Benford — talvez por razões psicológicas: pela intuição, falsa, de que a distribuição do primeiro algarismo é uniforme.


adaptado do capítulo 3 - "A magia do primeiro algarismo", do livro Da falsificação de Euros aos Pequenos Mundos, de Jorge Buescu

Sobre a circularidade da vida

   Ferécides e o seu aluno passeavam desde o meio-dia, conversando sobre temas muito diversos, quando decidiram deter-se para se consolarem e contemplarem melhor a paisagem, recostando-se sobre a erva de um prado numa pequena colina.

... Mantiveram-se em silêncio até o Sol percorrer boa parte do trajecto necessário para consumar a tarde. O rebanho de ovelhas tinha-se aproximado deles. Ferécides, olhando de soslaio para o seu aluno, perguntou-lhe então:
   - Observaste como as ovelhas, vendo-se dispersas, começam a girar em torno do pastor? Este rebanho que temos diante de nós deslocou-se por várias ocasiões. De cada vez que o pastor se sentava num lugar diferente, pouco a pouco, as ovelhas iam criando um círculo novo em seu redor.
   - E que tem isso de particular?
   - É uma demonstração de que a natureza se desenvolve formando círculos.
   - Explica-me isso, mestre, para que possa submeter à minha reflexão.
   Ferécides inclinou-se de novo sobre o prado e, contemplando o infinito, começou a dissertar, lentamente, dando uma entoação poética às suas palavras enquanto se recreava com a sua própria escuta.
   - Tanto o cosmos como a natureza avançam em círculos, ou seja, dando passos que regressam ao mesmo lugar. O final assemelha-se ao início, até se confundem, do mesmo modo que é impossível dizer em que ponto começa e onde termina um círculo. Observa, por exemplo, como os homens, chegados a uma certa idade longeva, se tornam semelhantes às crianças tanto nos seus gostos como no seu comportamento, no seu desamparo e na sua despreocupação pelas coisas do mundo. De um modo inverso, os recém-nascidos assemelham-se a pequenos velhos calvos, enrugados, ausentes do mundo, com a consciência completamente dirigida para o seu interior.
   Observa também de que maneira quem se sente à beira da morte procura regressar, movido por um impulso imperioso, ao sítio onde nasceu.
   Olha como se repetem ao estações: nora que gira ininterruptamente através das idades e que permite à árvore despojar-se das suas folhas para se vestir de novo com elas na Primavera. Contempla a água que desce das montanhas, formando rios até chegar ao mar. Aí, as névoas densas, elevando-se, terminam transformando-se em nuvens; ao viajarem impulsionadas pelo vento, uma vez nas montanhas, descarregam a sua água em forma de neve que, finalmente, depois do Inverno, se derrete dando forma a caudalosos rios que descem até ao oceano, cumprindo assim um rito infatigável.

   Pitágoras interrompeu o discurso do seu mestre.
   - Tudo o que dizes parece-me muito certo, mas, na realidade, não estamos a falar de um círculo.
   - Como assim...? - inquiriu Ferécides, saindo do êxtase que produziam em si as suas próprias palavras.
   Pitágoras insistiu no seu ponto de vista.
   - Não, porque certamente a Primavera regressa depois de cada Inverno, mas não é a mesma Primavera. Para que fosse um círculo deveria ser um retorno ao mesmo lugar e ao mesmo tempo.
   - Vês, Pitágoras, como não sabes interpretar correctamente uma metáfora? De acordo; se falarmos com absoluta precisão, a natureza não descreve um círculo, mas antes uma espiral. Mas por acaso a espiral não é circular? Por favor, meu filho, tem flexibilidade com as imagens metafóricas.
   Pitágoras, como bom discípulo, permaneceu pensativo tentando corrigir o seu erro, o que permitiu a Ferécides embarcar novamente no seu discurso.
   - Os fenómenos próprios da natureza descrevem círculos, mas também os fenómenos cósmicos dispõem do mesmo proceder, uma vez que os planetas e o Sol giram através de um círculo formado pelas constelações zodiacais. Cada dia, a abóbada celeste completa uma rotação em torno da nossa terra. De doze em doze anos, o planeta Júpiter regressa ao mesmo ponto do céu. Para alcançar a mesma estrela que deixou para trás no seu percurso, Saturno precisa de vinte e oito anos. Dois anos necessita Marte para fazer outro tanto.
   Enquanto Ferécides pronunciava estas palavras, a tarde avançava e as andorinhas começavam a apropriar-se do céu. O mestre encontrou a ocasião óptima para relembrar um velho texto poético que escreveu enquanto jovem, e acomodou-o aos seus comentários sobre a circularidade da vida.
   - No mês de Abril regressam as andorinhas. Com o seu ir e vir descrevem anéis cujo perímetro abrange o distante Sul e as nossas latitudes, anéis que enlaçam uma Primavera com a seguinte. Sim, a vida deleita-se expandindo-se ao longo das curvas sensuais que formam os sulcos invisíveis do universo. E tudo quer que cada movimento implique uma partida que não finaliza até regressar ao seu ponto de origem.
   O sol pensava já em retirar-se para a sua mansão subterrânea. Quando se dispuseram a empreender o caminho de regresso, o pastor já se afastava com o seu rebanho.
   - Já não formam um círculo à volta dele - advertiu Pitágoras com ironia!
   - Mas amanhã regressarão ao mesmo prado - respondeu Ferécides, impetuoso.

[...]
E um facto inquestionável é que nada, visto com suficiente distância, se move em linha recta, mas, finalmente, o que julgávamos ser rectilíneo é tão só um segmento de um imenso círculo.
[...]

in Pitágoras, o Filho do Silêncio, Benigno Morilla